NÃO LI, NÃO GOSTEI

0
1980

Perfil no Twitter @AlessandroLoio2 

_____

 

No filme Meia Noite em Paris (2011), o escritor angustiado Gil – personagem de Owen Wilson – encontra-se em Paris com seu ídolo-mito, Ernest Hemingway. Gil está terminando um livro e pede esperançosamente a seu novo amigo de balada que o leia e ofereça algumas dicas.

– Você faria isso por mim? – pergunta Gil.

– Ler seu romance?

– Sim. Tem cerca de 400 páginas e eu adoraria ter sua opinião sobre ele…

– Bem, já vou lhe dizer minha opinião sobre seu livro: eu não gostei. – responde Hemingway, taxativo.

– Mas você nem o leu ainda…

– Se for ruim, eu o odeio por ser um romance ruim. Se for bom, terei inveja de sua escrita e odiarei o livro ainda mais.

A cena é rápida, mas ilustra bem uma peculiaridade que vem se desenrolando desde que a geração Millennial chegou por aí.

Chamados de “geração Peter Pan” pela escritora Kathleen Shaputis, os Millennials (pessoas nascidas após 1982) estão tornando o bordão “não li, não gostei” um mantra digno de um ataque cardíaco em qualquer mínimo admirador de Paulo Francis ou Nelson Rodrigues. Os Millennials são o supra-sumo da Crítica-Miojo – aquela crítica instantânea, que sai pronta, quente e selada em 2 minutos como uma pipoca de microondas.

“Não li, não gostei” se transformou em uma resposta-padrão para criticar qualquer texto, particularmente na internet. A frase levanta uma questão básica: será que o crítico “não li, não gostei” de fato não leu? Se leu, será que compreendeu? Se compreendeu, será que refletiu sobre seu entendimento?

Se partirmos do princípio que “não li, não gostei” significa exatamente isso mesmo – que o texto criticado sequer foi lido, tendo sido jogado diretamente na caixa do “não gostei” -, o que temos é uma demonstração absurda de preconceito justamente por parte de uma geração que se diz “a mais tolerante e anti-preconceito” de todas.

Um leitor não tem que gostar de cada palavra que lê, especialmente quando acredita que pode oferecer críticas construtivas para melhorar a qualidade dos textos futuros de um autor. Nem tudo é do gosto de todos e, quando um determinado autor se coloca na vanguarda de um determinado assunto, é quase certo que você irá encontrar algo que não aprecia.

Apesar de muitos escritores terem sérios problemas ao avaliar seus próprios talentos (falaremos sobre narcisismo mais a frente…), alguns leitores sofrem do mesmo problema: “não li, não gostei” serve para se livrarem de enredos que não se desenrolam segundo seu gosto, de idéias que não estão alinhadas às suas, de posicionamentos que confrontam suas “verdades absolutas prévias” e de basicamente qualquer estímulo ao raciocínio que puxe o cobertor na aconchegante cama de suas zonas de conforto infantilizadas.

CRÍTICAS E NARCISISMO

É duro receber críticas. Não interessa como elas se apresentam – recheadas com leite condensado, perfumadas como um gambá ou pungentes como um soco no estômago. Críticas são sempre azedas. E críticas de literatura – sejam elas abordando textos, crônicas, contos, romances, enciclopédias ou guias das galáxias – são ainda mais complicadas. Todavia, se tornam ainda mais azedas e mais complicadas quando acompanhadas do bordão “não li, não gostei”.

O sujeito-miojo – ou sujeita-mioja – do “não li, não gostei” em geral tende a ser alguém com um sentimento de inferioridade ou personalidade auto-vitimizante, um intelecto no máximo mediano, com pouco humor ou perspectivas sobre sua própria vida, e obcecado em diminuir seu sofrimento ganhando atenção, qualquer tipo de atenção.

É óbvio que isto deve ser diferenciado da crítica ferrenha de alguém que leu o escrito, ponderou sobre ele, fez sua própria pesquisa sobre autor e obra, e construiu um parecer abrangente e fundamentado sobre o exposto.

A turma do “não li, não gostei” não faz coisa alguma disso. Ela não quer trabalho. Ela olha a manchete, olha a foto da capa do livro, olha a cara do autor na orelha e forma uma opinião tácita: “Não li, não gostei”, e pronto. Não interessa se o assunto não se desenrola ao longo de 400 páginas de um modo diferente daquele que o crítico-miojo acredita: só pela fonte escolhida para o título ou pela edição da imagem ele já sacou tudo. E não gostou.

Nada disso deveria ser motivo de surpresa. Os Millennials estão exatamente no clímax do narcisismo: a incidência de transtornos narcisistas é 3 vezes maior entre pessoas na casa dos 20 anos que entre aquelas com 65 anos ou mais, por exemplo. E os estudantes de hoje apresentam índices de narcisismo 58% acima daqueles de estudantes da mesma faixa etária em 1982.

A coisa está tão feia que, se você tem entre 20 e 35 anos de idade, provavelmente está pensando que este texto é uma ofensa à sua pessoa em particular e não uma análise de toda uma geração… Haja narcisismo…

FRUTOS DA CULTURA DA INFÂNCIA-MEDALHINHA

Os críticos-miojo da geração Millennial foram formatados ainda na infância pela Cultura da Medalhinha. Sabe aquela criança que ganhou uma medalhinha na competição esportiva da escola simplesmente porque participou da corrida, mesmo chegando 5 posições atrás do último colocado? Então. Dez anos depois, ela se tornou um Millennial crítico-miojo.

As crianças-medalhinhas cresceram recebendo congratulações, cafuné, beijinhos da mãe e tapinhas nas costas não por terem cumprido seu dever com honra e determinação, ou por terem apresentado resultados práticos superando seus limites sob pressão, mas simplesmente por “estarem lá”.

“Estar lá” era suficiente para que elas ganhassem uma medalhinha, um troféu de lata; para que fossem reconhecidas, valorizadas, agraciadas, respeitadas. E agora, como “estão lá” – na entrevista para um emprego, no meio de um relacionamento ou cuspindo suas críticas superficiais nas 11 dimensões do mundo líquido hiperconectado -, elas querem receber o mesmo mimo que seus pais sempre lhes deram. Querem ser premiadas. Querem gratificações. E querem neste instante.

“Não li, não gostei” é apenas mais uma manifestação da geração pós-moderna multitarefa que faz mil coisas sem terminar coisa alguma.

As crianças-medalhinha cresceram e viraram adultos que moram com seus pais, não terminaram a faculdade e não conseguem assumir qualquer compromisso de médio prazo – mesmo estando na beira dos 30 anos de idade. Como são multitarefas, antenados, informatizados, descolados, eles têm aquela opinião formada sobre tudo – filmes, livros, revistas, músicas, carros, sexo, países, aquecimento global, resfriamento global, espécies em extinção, modelos econômicos e ideologias sócio-políticas – que nunca estudaram a fundo.

Mas eles não precisam estudar. Eles dizem “não li, não gostei” e isso parece resolver o assunto cabeça dessa gente. Se porventura você comete a blasfêmia de recomendar que leiam, que reflitam, que construam de fato seu próprio entendimento sobre o tema abordado, as ex-crianças medalhinhas rapidamente dizem não ter tempo, não ter interesse, ter mais o que fazer (arrumar o quarto seria uma boa ideia, né?…), e vociferam que você é um preconceituoso coxinha fascista opressor por sugerir que o crítico-miojo não sabe o que ele de fato não sabe.

Segundo o jornalista e escritor André J. Gomes, “quem bate no peito com orgulho e diz não vi e não gostei é uma besta monumental”:

“Quando alguém encerra um assunto, sem sequer tê-lo olhado pelo buraco da fechadura, está assumindo uma postura de ignorância proposital, desprezando e pisoteando uma das poucas verdades simples da vida: nós não sabemos tudo. Nunca vamos saber! Quem não tem a humildade de reconhecer que desconhece tem desprezo por toda chance de aprender. Em geral, exibe excesso de empáfia, arrogância, mania de superioridade, ódio, incompreensão, intolerância e essas coisas que tornam o mundo pior todos os dias”, diz André.

A geração Millennial, com suas legiões de críticos-miojo, “toma conclusões impensadas e acomoda-se em juízos superficiais por preguiça de pensar”.

– O mínimo que se espera de uma pessoa provida de inteligência – afirma André – é que ela saiba realmente do que não está gostando. Que se aprofunde como puder a respeito do que rejeita e o faça com propriedade. Que não se contente em boiar à deriva, superficial, enquanto grita: vejam, vejam como eu sou idiota, vejam como eu sei fazer birra, vejam como eu insisto em não mexer nas minhas certezas e verdades prontas, vejam, eu sou uma besta completa e tenho orgulho disso!”

Não conheço o Sr. Gomes pessoalmente, mas concordo com sua premissa: “Não diga não li e não gostei. É feio. Se quiser mesmo fazê-lo, a vida é sua, o problema é seu. Mas não saia alardeando isso por aí, não. É patético.”

É isso aí, André. Não lhe vi. Mas já gostei.

Deixe uma resposta