O JOGO DA CULPA

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1980

Dizem que errar é humano e colocar a culpa em alguém é sábio. Inclusive, ri melhor quem ri por último porque o último teve mais tempo que os outros para resolver a quem iria atribuir o deslize.

Sim, amamos culpar algo ou alguém, mas por quê?

Recentemente, Daniel Wegner e Kurt Gray – uma dupla de psicólogos de Harvard – investigaram de modo bastante criativo as engrenagens por trás desse hábito. Em seu livro The Mind Club, os autores desenvolveram duas hipóteses para explicar nossa demanda incansável por um culpado: a Teoria da Díade Moral e a Teoria da Impressão do Personagem

A TEORIA DA DÍADE MORAL

Quando algo bom ou ruim ocorre, nos dedicamos à tarefa de identificar um perpetrador moral (ou “executor”) e um destinatário moral (ou “receptor”) para o sucedido.

Discernir os papeis de executor e receptor é imprescindível para que completemos moralmente uma cena em nossa cabeça, dando-lhe algum sentido de causa & conseqüência. Portanto, se um evento ocorreu, impreterivelmente existe um receptor / destinatário e deve existir um perpetrador / executor.

Esse tipo de sofismo cognitivo lembra muito a Analogia do Relojoeiro de William Paley (1743-1805), teólogo inglês responsável pela famosa frase: “Não posso imaginar que exista um relógio e não exista um relojoeiro”. Elaborado como um argumento em prol de uma divindade aos moldes judaico-cristão-islâmicos, o bordão de Paley ganhou grande fama várias correntes religiosas e pseudocientíficas. E a Teoria da Díade Moral de Wegner e Gray representa extremamente bem o mesmo processo mental: nossa programação intelectiva dual ordena que identifiquemos um executor sempre que nos deparamos com um receptor.

Quando esbarramos com alguém sofrendo, a vítima em geral é imediatamente identificada como destinatário / receptor daquele martírio. Ato contínuo, partimos em busca de um agente moral para completar o quadro: é necessário responsabilizar um perpetrador pelo flagelo. Testemunhar dor, suplício, provação, padecimento ou penúria dispara em nós a urgência em especificar um executor sobre quem colocar a culpa por tudo aquilo. Nosso esforço pré-programado sai à caça do relojoeiro.

Intrinsecamente à Teoria da Díade Moral, Gray e Wegner identificaram características quanto à maneira como pensamos sobre os desígnios do destino e agruparam essas peculiaridades em 2 categorias principais: Experiência e Direção.

A categoria Experiência consiste na capacidade de sentir, de experimentar sentimentos como fome, dor, constrangimento e alegria. A categoria Direção, por outro lado, consiste na capacidade de planejar, raciocinar e contrair responsabilidades morais.

Gray e Wegner sugerem que as pessoas tendem a apontar um perpetrador / executor mais rapidamente quando percebem algo ou alguém com capacidade maior para ser Direção que Experiência. Em outras palavras: julgamos as pessoas mais merecedoras de punição quando elas apresentam atributos de força (Direção). Por outro lado, se achamos que alguém possui um predomínio de traços de vulnerabilidade (Experiência), de antemão tendemos a isentar este indivíduo de qualquer culpa moral.

E isso nos leva à…

TEORIA DA IMPRESSÃO DO PERSONAGEM

De acordo com esta ideia, as pessoas generalizam os papeis em uma interação específica para todas as demais interações subsequentes.

Se alguém é um destinatário moral (receptor) em um caso, temos dificuldade para identificá-lo como perpetrador em outro caso. Se uma pessoa é perpetradora, temos dificuldade em pensar nela como uma destinatária. Esta prática usual implica na constatação de que um perpetrador moral dificilmente será visto como receptor, e um destinatário moral dificilmente será visto como um perpetrador: uma vez distribuídos os papeis de Vítimas e Algozes na nossa mente, não aceitamos mais qualquer alteração neste elenco – ainda que os cenários mudem.

As atitudes hostis, arbitrárias e intransigentes manifestadas pela Teoria da Impressão de Personagem derivam de mecanismos hiperativos de Detecção de Agentes Morais embutidos em nossa espécie desde muito antes do Paleolítico. Estes mecanismos podem ter sido benéficos do ponto de vista evolucionário: nossos ancestrais que frequentemente detectavam um agente executor onde não havia qualquer agente possuíam uma maior chance de sobrevida que aqueles que não detectavam um agente quando ele estava presente.

Ao ouvir um barulho na escuridão da noite, era mais vantajoso para sua saúde preocupar-se com o tigre dentes de sabre que não estava lá que deixar de preocupar-se com o tigre que efetivamente estava. Como resumiu Teóphile Gautier (1811-1872): “em todos os tempos, os prudentes sempre venceram os audazes”.

MORALIDADE INCONSCIENTE

O desejo para completar nossas dualidades morais persiste a pleno vapor nos dias de hoje. Nossas mentalidades pós-modernas habitam corpos planejados há dezenas de milhares de anos – e os reflexos e instintos daquelas eras ainda habitam como tiranos sorrateiros em nós.

As dúvidas acerca do que é a mente e como funcionam nossas intuições sobre moralidade estão longe de serem elucidadas. Mas a Teoria da Díade Moral e a Teoria da Impressão de Personagem pelo menos ajudam a explicar um pouco o modo como distribuímos julgamentos e culpas, e porque tendemos sistematicamente a eximir certos indivíduos – e muitas vezes nós mesmos – de toda e qualquer responsabilidade neste mundo.

 

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