JOÃO RAMALHO, BARTIRA E A ORIGEM DOS PAULISTAS

0
1928

Perfil no Twitter @AlessandroLoio2 

_____

 

Segundo as escritoras Andreia de Jesus Cintas Vazquez e Damiana Rosa de Oliveira, autoras de “A Fantástica História (Ainda não Contada) da Tradução no Brasil” (2018), e Maria Ester Vargas, autora de “João Ramalho – Bandeirante de Lafões” (2000), João Ramalho Maldonado nasceu em data desconhecida, na cidade portuguesa de Vouzela, distrito de Viseu, filho de João Velho Maldonado e Catarina Afonso Valbode. Ainda jovem, se casou com Catarina Fernandes das Vacas, a quem deixou grávida quando partiu rumo ao Brasil.

Para o historiador Alexandre Herculano (1810-1887), João Ramalho teria feito a viagem  em segredo, chegando em Santo André da Borda do Campo por volta de 1492/1493, e tendo seu primeiro filho com Bartira em 1503.

De acordo com Antônio Fernando de Araújo Sá e Bruno Gonçalves Álvaro, autores de “Cultura, Memória e Poder” (2016), Ramalho teria sido um náufrago da segunda expedição de Gonçalo Coelho (503-1504), ou teria vindo com as expedições de João Dias Solis ou de Fernando de Magalhães. Os mesmos autores informam ainda que cartas jesuítas dizem que Ramalho teria chegado ao Brasil apenas por volta de 1510.

A despeito dessas dúvida, a data mais “oficial” da chegada de Ramalho – 1509 – é calculada a partir do registro de sua excomunhão em 1549, onde foi anotado que João andava “amancebado há 40 anos com Bartira, filha de Tibiriçá”.

Independente de quanto chegou aqui, qual teria sido o motivo da viagem de Ramalho? Náufrago, degredado ou um voluntário enviado pelo rei?

Em 1487, Ramalho havia recebido de Dom João II de Portugal uma Carta de Privilégio, sendo nomeado Cavaleiro do Rei. Este título, cujo documento atualmente se encontra no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, não era oferecido a qualquer um: tratava-se de uma honraria concedida apenas a pessoas de grande confiança do Rei e que lhe tivessem prestado serviços de grande relevância.

Antes da assinatura do Tratado de Tordesilhas, Portugal e Espanha – e outros países – realizaram algumas expedições de reconhecimento para as Américas. Teria Ramalho vindo para o Brasil em “missão especial” a pedido de João II? Não se sabe.

Ramalho chegou ao Brasil em algum momento no começo do século XVI e rapidamente se tornou amigo do morubixaba Tibiriçá (um dos principais líderes tupiniquins no planalto paulista) e se casou com uma das filhas de Tibiriçá, Bartira, também chamada de M´bicy (Flor de Árvore),mais tarde batizada Isabel Dias, com quem teve pelo menos 12 filhos. Anos mais tarde, André, um dos filhos de Ramalho, guiaria o Padre Manuel da Nóbrega em suas incursões pelo sertão.

Em 1532, Ramalho provavelmente foi avisado da chegada de uma expedição estrangeira ao litoral e antecipou que os índios poderiam hostilizá-la. Chamou Antonio Rodrigues (morador de Tumiaru, perto de Bertioga, e casado com uma filha de Piquerobi, irmão de Tibiriçá) e ambos foram ao encontro dos recém-chegados. A esta altura, Ramalho era bastante respeitado pelos índios e isso certamente evitou que Martim Afonso de Souza fosse recebido com flechas e lanças pelos guainás quando Martim Afonso entrou na barra de Bertioga, em 22 de janeiro de 1532.

No ano seguinte, Ramalho ajudou Martim a construir um forte e proteger a vila de São Vicente, onde foi iniciada uma cultura de cana-açúcar e instalou-se um engenho – o Engenho dos Erasmos, um dos primeiros do Brasil. Martim também instalou o pelourinho (coluna pedra onde os criminosos eram expostos e punidos), a cadeia, a igreja e a Câmara. Em busca de ouro e acompanhado de Tibiriçá e Ramalho, o incansável e ganancioso capitão-mor remou de Santos a Cubatão, provavelmente subindo pelo Largo da Pompeba e ao longo do rio Cascalho, de onde a expedição partiu a pé pela serra do Paranapiacaba até a nascente do rio Tamanduateí e, de lá, para a Aldeia de Piratininga. Durante a viagem, Tibiriçá tornou-se um admirador tão grande do capitão que, ao ser seria batizado pelos jesuítas, escolheu como nome cristão “Martim Afonso Tibiriçá” em homenagem ao fundador de São Vicente.

Em Piratininga, Martim elevou a aldeia à categoria de Vila (Vila de São Paulo de Piratininga), dando a ela um pelourinho (símbolo do poder e da justiça) e uma Câmara de vereadores. Ciente da importância de Ramalho, Martim nomeou-o governante militar da vila.

Em 1534, João Ramalho recebeu de Martim uma sesmaria na qual fundou a povoação de Santo André da Borda do Campo (hoje São Bernardo do Campo).

Ramalho sequestrava e aprisionava índios de tribos rivais para vendê-los aos portugueses como escravos (mais ou menos como Bacharel de Cananeia também fazia). Segundo o soldado alemão Ulrich Schmidel, que escreveu o livro “Viagem ao Rio da Prata” após permanecer cerca de 17 anos na América do Sul (provavelmente entre 1536 e 1553), Ramalho possuía tamanha influência entre os índios que era capaz de mobilizar 5 mil homens em um só dia se fosse necessário.

Sob a proteção de Ramalho, a capitania de São Vicente prosperou e, em 1548, já possuía 6 engenhos, muitos escravos africanos e mais de 600 habitantes – provavelmente, boa parte destes aparentados de Ramalho.

Em 1549, Tomé de Souza – que havia chegado na Bahia em 29 de março daquele ano para assumir o posto de primeiro governador-geral da colônia – escreveu sobre Ramalho ao rei Dom João III, anotando: “tem tantos filhos, netos e bisnetos que não ouso dizer a Vossa Alteza, ele tem mais de 70 anos, mas caminha nove léguas (o equivalente a 45 km) antes de jantar e não tem um só fio branco na cabeça nem no rosto“. A prole incalculável de Ramalho pode ser considerada lendária e talvez desse fato provenha a designação de “povoador”: Ramalho é avô de quase toda a população nascida na Vila de São Paulo de Piratininga, sendo considerado o principal tronco das famílias paulistas. Apesar de sua vida de polígamo, Ramalho era profundamente religioso: todos os seus filhos, legítimos ou não, foram batizados.

Mais ou menos por volta de 1549, Manuel da Nóbrega também teve seu primeiro encontro com Ramalho, descrevendo-o como alguém de vida promíscua: “Tem muitas mulheres. Ele e seus filhos andam com as irmãs das esposas e têm filhos delas”.

Em uma carta de Pero Correa endereçada ao Padre Baltazar Nunes, datada de 20 de junho de 1551, lê-se que (Ramalho e outros índios) quiseram “tratar mal nosso Padre e o ameaçaram com um pau, e o ameaçador foi um homem que a 40 anos está nesta terra e tem já bisnetos e sempre viveu em pecado mortal e anda excomungado”.

Mesmo sendo uma das pessoas mais importantes da vila, Ramalho foi expulso de uma missa realizada na Capela de Santo André pelo padre Leonardo Nunes sob a alegação que não respeitava os votos de matrimônio: era “casado” Bartira no Brasil, mas seguia “casado” com Catarina das Vacas em Portugal. Em 1550, isso ocasionaria a excomunhão de Ramalho pelo jesuíta Simão de Lucena. Aborrecido com o evento, Ramalho escreveu a Manuel da Nóbrega denunciando o comportamento de alguns sacerdotes que também andavam “pecando contra a castidade” com algumas índias, o que levou Nóbrega a tomar medidas drásticas que, curiosamente, o aproximaram de Ramalho .

Em conversa com Nóbrega, Ramalho admitiu que fora casado em Portugal com Catarina, a quem jamais tornou a ver e que desconhecia se ainda vivia. Nóbrega escreveu para seus companheiros jesuítas em Portugal, solicitando informações sobre a primeira mulher de Ramalho. Mais tarde, Nóbrega batizou Bartira como Izabel Dias e efetuou seu casamento com João Ramalho, após uma vida em comum de 40 anos. Mas, aparentemente Catarina das Vacas ainda estava viva na época: quando Ramalho fez seu testamento em 1580, Barita figurava não como sua mulher, mas como sua criada.

Em 1552, Tomé de Sousa visitou São Vicente. No ano seguinte, em 8 de abril de 1553, elevou o povoado de Santo André à categoria vila, nomeando Ramalho alcaide, guarda-mor e capitão da localidade. Às suas custas, Ramalho fortificou o povoado com trincheiras e quatro baluartes. Em 31 de agosto de 1553, Nóbrega escreveu: “João Ramalho é muito conhecido e venerado entre os gentios e tem filhas casadas com os principais homens desta capitania e todos estes filhos são de uma índia, filha dos maiores e mais principais desta terra”. Infelizmente, mesmo com toda a dedicação de João, Santo André não vingou: na fase mais “próspera”, não chegou a contar com 30 moradores brancos.

Em 25 de janeiro de 1554, os Jesuítas, capitaneados por Nóbrega, fundaram um Colégio na região da Vila de Piratininga. Entre 1557 e 1558 Ramalho atuava como vereador da Câmara Municipal de Santo André, e a iniciativa dos jesuítas colocava lenha na fogueira da atmosfera de conflito entre João Ramalho e os Padres da Companhia de Jesus pelo controle da população indígena. Em 1560, Ramalho não teria como evitar a ordem do novo governador-geral – Mem de Sá – de transferir todos os moradores para São Paulo e o Pelourinho, para defronte do Colégio de São Paulo. Isso extinguiu Santo André. Ramalho, sua família e todo os outros moradores tiveram que se mudar para a nova localidade administrativa – muitos, contra a própria vontade.

Porém, em 1554, com o incentivo e o patrocínio da colônia francesa na baía da Guanabara, explodiu a Confederação dos Tamoios, uma guerra entre os portugueses e seus aliados contra uma aliança liderada pela nação dos Tubinambás. Entre os vários embates ocorridos entre 1554 e 1567, a Confederação realizou um grande cerco à vila de Piratininga na manhã de 9 de julho de 1562.

Pressentindo a hostilidade crescente, os portugueses haviam promovido Ramalho Capitão-mor para a Vila de Piratininga em 28 de maio de 1562. Ramalho e Tibiriçá já haviam sido avisados das intenções dos revoltosos em 3 de julho. Prevendo o ataque iminente, Tibiriçá ordenou que os índios de Piratininga abandonassem suas casas e suas lavouras. Antes da ofensiva, Jaguaranho (“cão bravo”), temendo pela vida de seu tio, tentou convencer Tibiriçá a abandonar a defesa do povoado.

Quando os índios da confederação finalmente chegaram à vila, Ramalho comandou suas tropas e, junto com Tibiriçá, defendeu o povoado do ataque com grande coragem e bravura.

Durante o combate, Tibiriçá ofereceu aos portugueses sua prova derradeira de fidelidade: dando a entender que concordava com a revolta, propôs que Jaguaranho, que liderava o cerco, o encontrasse para que desfechassem um ataque final contra os portugueses. Entretanto, quando os tamoios chegaram, Tibiriçá matou seu seu irmão Piquerobi e seu sobrinho Jaguaranho. Sobre este evento, Anchieta escreveu ao padre Inácio de Loyola em 1 de setembro de 1554, dizendo: “Da guerra a que me referi acima, tendo um destes cristãos trazido um cativo, entregou-o a um irmão dele para o matar. E matou-o de fato com muita crueldade, tingindo as próprias pernas de vermelho e tomando o nome de quem matara em sinal de honra, como é costume entre os gentios; e, se o não comeu, deu-o ao menos a comer aos índios, exortando-os a que não deixassem perder a quem ele matara, mas o assassem e levassem para comer”.

Tibiriçá morreria no natal de 1554 devido a uma epidemia de disenteria que assolou a aldeia Piratininga. Seus restos mortais encontram-se na cripta da Catedral da Sé. Em 1580, Susana Dias, sua neta, fundaria uma fazenda à beira do Rio Tietê, a oeste da cidade de São Paulo, próximo à cachoeira denominada pelos indígenas de “Parnaíba”. Hoje, é a cidade de Santana de Parnaíba. Entre os numerosos descendentes da linhagem de Tibiriçá encontra-se a rainha Sílvia, da Suécia.

Após o Cerco do Piratininga, Ramalho começou a afastar-se da vida pública, recusando o mandato de vereador para o qual foi eleito em 1564 e retirando-se para a região do Vale do Paraíba, para viver entre os tupiniquins. Contudo, em 1576, seu nome ainda constava em ata da Câmara paulistana. Em 3 de maio de 1580, já doente, mandou o tabelião Lourenço Vaz lavrar seu testamento em São Paulo de Piratininga. Por volta de 1582, falece na selva, em lugar desconhecido.

A história de Ramalho sugere fortemente que Portugal planejou muito bem a colonização no Brasil. O processo não foi uma “coisa por acaso”, mas uma estratégia que vinha sendo estudado há tempos. Os portugueses perceberam, inclusive pela experiência com suas colônias na África, que um bom trato com a língua local resultava em relações econômicas melhores. Talvez por isso tenham enviado tantos “degredados” para o Brasil antes do passo definitivo para a colonização, iniciada a partir da década de 1530.

Deixe uma resposta