UMA REFLEXÃO SOBRE DROGAS

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A maioria dos países permite o uso recreacional de cafeína, nicotina e álcool, mas proíbe o uso de substâncias como maconha, cocaína, heroína, ecstasy, LSD, DMT e psilocibina. Em quase todos os casos, as normas que tornam algumas drogas ilegais não se baseiam em evidências objetivas, mas em uma percepção emocional de sua imoralidade: consideramos algumas drogas “erradas” e ponto final. Nenhuma discussão é aceita além deste limite. Como sempre ocorre, o argumento “Moral” inspira um apelo que supera a lógica, teoricamente sustentando-se por si só. Apesar desta retórica, é surpreendentemente difícil defender o motivo pelo qual o consumo de algumas substâncias é permitido e de outras não.

Por exemplo: o Brasil é o terceiro maior produtor de cerveja do mundo, e a produção cresce a uma taxa média de 5% ao ano. O segmento cervejeiro responde por 80% do mercado de bebidas alcoólicas, faturando mais de R$ 70 bilhões por ano e recolhendo cerca de R$ 21 bilhões em impostos (1). Não obstante, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), o álcool é o maior fator de risco de morte entre adolescentes entre 15 e 19 anos, superando o uso de qualquer outra droga. No Brasil, 73,9 homens e 11,7 mulheres a cada 100 mil habitantes morrem anualmente por causa do álcool (2). Como resultado enquanto os pequenos e os grandes produtores de bebidas alcoólicas movimentam o equivalente a 1,6% do PIB, o alcoolismo suga 7,3% do PIB (1). Ainda assim, as bebidas alcoólicas não são consideradas essencialmente imorais ou ilegais.

Vejamos o caso do tabaco: cerca de 15% dos brasileiros maiores de 18 anos – ou mais de 20 milhões de pessoas – são usuários de produtos derivados do tabaco, com aumento considerável do risco para doenças cardiovasculares, pulmonares e câncer (3). O tabagismo é responsável por 12,6% de todas as mortes em pessoas com mais de 35 anos de idade no Brasil, causando aos cofres nacionais um prejuízo de R$ 56 bilhões a cada ano entre custos médicos diretos e custos decorrentes da perda de produtividade, morte prematura ou incapacitação. A arrecadação com impostos sobre produtos de tabaco retorna R$ 12 bilhões destes custos, restando ao Estado um prejuízo de R$ 44 bilhões (4). Ou seja: para o bolso da sociedade, a legalidade da nicotina é um péssimo negócio. Ainda assim, a nicotina não é considerada essencialmente imoral ou ilegal.

Mesmo com estas evidências, insistimos no julgamento Moral por motivos diversos. Por exemplo: dizemos que as “drogas” são imorais, pois produzem estados mentais artificialmente alterados. Mas o que há de intrinsecamente errado com isto? Porventura não utilizamos drogas para tratar depressão, paranoia, psicose, ansiedade e insônia que induzem estados mentais diferentes daqueles do hábito do indivíduo? Por que estas deveriam ser tratadas de maneira diferentes das outras? Você poderia responder: ora, porque algumas drogas são “terapêuticas” e outras apenas “recreacionais”. E exatamente como você diferenciou uma da outra? Um hobby, um estado de relaxamento ou a diversão pura e simples não podem ser considerados terapêuticos? Ler um livro para pegar no sono ou ouvir uma música para relaxar depois de um dia estafante são recursos artificiais amplamente empregados para produzir estados mentais alterados. Estas atividades são imorais?

Dizemos que as drogas são imorais, pois a vida é a sagrada e as drogas a destroem. Entretanto, considere o caso do açúcar refinado: o excesso de açúcar mata milhões de pessoas no mundo todo, todos os anos. Poucas pessoas consomem açúcar porque são forçadas a isso. Consumimos açúcar porque nos sentimos bem, porque o açúcar é uma fonte rápida de energia e – principalmente – porque alimentos doces são gostosos. Mas não precisamos consumir açúcar refinado para sobreviver: o organismo pode ir muito bem retirando o açúcar presente em alimentos naturais. Se vamos proibir as drogas pelas ameaças que elas trazem à vida (que é sagrada), não deveríamos fazer o serviço completo e proibir o açúcar também?

Atividades como boxe, MMA, base jumping, paraquedismo, alpinismo e vôo livre são extremamente arriscados – ainda que este seja um perigo controlado e assumido de modo voluntário. Todavia, se vamos proibir o uso de drogas exclusivamente pelos danos e riscos que elas trazem ao usuário e à vida que é sagrada, não deveríamos aproveitar a chance e aprovar um pacote tornando estas atividades ilegais de uma vez por todas? E o que dizer sobre pessoas que se alimentam de maneira inadequada, se recusam a fazer exercícios ou se tornam voluntariamente obesas. Elas estão colocando suas vidas em risco! Não deveriam ser proibidas e punidas pela força da Lei de fazerem isto?

Dizemos que as drogas são imorais, pois limitam livre arbítrio e causam dependência. Bem, seu livre arbítrio é limitado pelo Estado, pelas convenções sociais, por seus genes, e por suas obrigações com a sua família, seu trabalho e suas contas. E somos dependentes de comida, água, afeto e relacionamentos: o jejum, a desidratação, o isolamento emocional e a solitude, quando muito intensos e prolongados, podem produzir danos físicos e psicológicos terríveis.

Finalmente, dizemos que as drogas são imorais, pois podem causar danos a outrens e à propriedade de terceiros, ainda que não intencionalmente. Neste caso, deveríamos ser honestos com o método de raciocínio empregado e repensar a Moralidade de automóveis, bicicletas, motocicletas, skates, patins, aviões, helicópteros, pisos encerados, piscinas, varandas e janelas sem grades, tomadas elétricas, embalagens de vidro, utensílios de plástico, armas de fogo e incontáveis medicamentos.

Após quase cinco séculos de disseminação do método científico, qualquer julgamento Moral deveria envolver evidências, não emoções. E delegar ao Estado a proibição ou autorização do uso de drogas consiste em manter a tutela governamental de decisões que deveriam caber unicamente ao indivíduo. O Estado deveria servir para proteção dos mais vulneráveis – bebês, crianças e pessoas mentalmente incapacitadas, por exemplo –, deixando aos adultos a responsabilidade pelas consequências de suas próprias escolhas.

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Fontes:

(1) Correio Braziliense Economia. País perde com alcoolismo 4,5 vezes mais do que o lucro de fabricantes. Jornal Correio Braziliense, 24/01/2015. Acessado em https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/economia/2015/01/24/internas_economia,467939/pais-perde-com-alcoolismo-4-5-vezes-mais-do-que-o-lucro-de-fabricantes.shtml

(2) Nações Unidas do Brasil. Brasil é o terceiro país das Américas com mais mortes de homens causadas pelo álcool. ONU, 20/08/2015. Acessado em https://nacoesunidas.org/onu-brasil-e-o-terceiro-pais-das-americas-com-mais-mortes-de-homens-causadas-pelo-alcool/

(3) Governo do Brasil. Mortes por tabagismo podem chegar a 7,5 mi por ano, diz OMS. Portal Brasil, 30/08/2017. Acessado em http://www.brasil.gov.br/noticias/saude/2017/08/mortes-por-tabagismo-podem-chegar-a-7-5-mi-por-ano

(4) Pinto M et al. Carga de doença atribuível ao uso do tabaco no Brasil e potencial impacto do aumento de preços por meio de impostos – Documento técnico IECS N° 21. Instituto de Efectividad Clínica y Sanitaria, maio de 2017. Acessado em http://actbr.org.br/uploads/arquivo/1169_apresentacao_custo.pdf

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